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Artigo – SINTER 2.0: A ressurreição de um fantasma
13 DE SETEMBRO DE 2024
O texto aborda os desafios da modernização do Registro de Imóveis no Brasil, destacando a implementação da DOI-WEB e a volta do SINTER. A falta de integração entre sistemas, a redundância de cadastros e a dependência de processos arcaicos são obstáculos a serem superados. A criação do SINTER, embora centralizadora, pode auxiliar na apuração do valor de referência dos imóveis, mas sua efetividade dependerá da cooperação entre as instituições envolvidas.
Introdução
O processo de modernização do Registro brasileiro tornou-se acidentado e seus resultados ainda pífios e insuficientes. Fiquemos num só exemplo: a nova DOI-WEB, prevista na Instrução Normativa 2.186, de 12/4/24, da RFB – Receita Federal do Brasil. Eis a curiosa solução avant la lettre da futura LC que hoje tramita no Congresso Nacional e que integra o plexo da reforma tributária.1
Nesta nova modalidade de DOI, os cartórios são convocados a interagir com o órgão estatal por intermédio de plataformas de WebService que deverão ser concebidas pelas próprias serventias extrajudiciais e/ou por seus proxies registrais. Outra alternativa, oferecida pelo órgão fazendário, seria prover informações por intermédio de página disponibilizada pela própria RFB.
Entretanto, muitos dos dados que agora são exigidos pelo órgão não se acham disponíveis nos sistemas tradicionais dos cartórios – e isto por uma razão bastante singela: são elementos não previstos e exigidos pelo art. 176 da LRP. Para completar o bloco de declarações, será necessário coletar elementos de várias fontes e promover a inserção manual na plataforma estatal – ou em bloco, no formato JSON.2 O certo é que haverá um retrabalho (em regra manual) para a complementação de informações de acordo com o novo layout da DOI-Web, salvo se houver um algoritmo inteligente para racionalizar o processo de formação da planilha informativa.
O elenco de dados obrigatórios se acha especificado no documento publicado pela RFB – Manual de Operações – DOI.3 No item 8 – campos do arquivo JSON – encontra-se a especificação do registro, com a indicação dos campos tornados obrigatórios. A especificação do conjunto de dados não deixa de representar uma indução tendente a reestruturar o próprio sistema ontológico do registro de Imóveis brasileiro. A modelagem dos dados, que nasce de uma instância extrarregistral, não se acha coordenada com a especificação do próprio SREI, que tarda lamentavelmente. Este descompasso é ruinoso para todos os órgãos e instâncias envolvidos. O § 3º do art. 1º e art. 7-A da LRP preveem a “escrituração por meio eletrônico”, fazendo pressupor a existência de um registro inteiramente eletrônico que ainda não existe. A especificação do SREI, estabelecida no ano de 20124 e recomendada pelo CNJ em 20145, não passou da POC (prova de conceito) levada a efeito em 20196. Sem uma base estruturada do SREI, pergunta-se: de onde virão os dados exigidos pela RFB de modo que o SREI possa interagir de maneira eficiente com a Fazenda Federal por meios eletrônicos? De quais fontes serão extraídos os dados?
Como vimos, os dados exigidos pela administração tributária não se acham elencados como requisitos legais obrigatórios para a prática dos atos de registro (art. 176 da LRP). Como conciliar os dados exigidos pela RFB com os gerados no âmbito do próprio registro? Como estruturar os dados espraiados de forma narrativa (inc. I do art. 231 da LRP) nas matrículas e em fontes acessórias dos cartórios?
Eis a ressureição do velho SINTER – Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais, redivivo pelo decreto Federal 11.208, de 26.9.22, que criou o CIB – Cadastro Imobiliário Brasileiro (art. 5º), regulamentado pela IN RFB 2.030, de 24/6/21, e pela IN RFB 2.186, de 12/4/24. Regulamentação premonitória de LC que ainda não existe.
O SINTER é um cadastro imobiliário com a ambição de abarcar e conciliar aspectos cadastrais e jurídico-reais de todo o território brasileiro, substituindo-se, em parte, aos próprios municípios na gestão e ordenação territoriais. O projeto em tramitação prevê a recriação, em grande estilo, do SINTER, atraindo e concentrando dados em sua usina informacional. Busca-se criar referências objetivas para apurar e divulgar o valor de referência dos bens imóveis, dados que deverão ser divulgados e disponibilizados no SINTER. Entretanto, como se fará isto? Responde-nos o projeto: “para fins de determinação do valor de referência, os serviços registrais e notariais deverão compartilhar as informações das operações com bens imóveis com as administrações tributárias por meio do Sinter” (art. 251 do projeto aprovado na Câmara). Coerentemente com o modelo centralizado da reforma tributária, o PLC 68/2024 consolida o CIB – Cadastro Imobiliário Brasileiro no âmago da administração federal (inc. III, § 1º do art. 43 do PLC). Os serviços notariais e registrais deverão, no prazo de 12 meses, adequar seus sistemas “para adoção do CIB como código de identificação cadastral dos bens imóveis” (“b”, I, art. 266).
Fosse um modelo de coordenação entre duas instituições reconhecidamente singulares – Cadastro e Registro – ambas intercambiando dados, seria uma ideia extraordinária. Entretanto, parece que a RFB constrói um espelho do Registro, com a chave geral do sistema – CIB -, com a qual se abrem as portas para os dados registrais concentrados no órgão estatal.
Novas demandas – velhas soluções – novos desafios
Neste cenário, antevê-se o fenômeno já apontado por mim: dão-se soluções anacrônicas a demandas digitais que se originam da sociedade da informação. Na impossibilidade de utilizar as ferramentas tecnológicas concebidas para dar respostas eficientes a tais exigências, tendemos a resolver os novos problemas e desafios com processos arcaicos, disfuncionais, sabendo-se, de antemão, que a solução passaria, simplesmente, pela assimilação de novas tecnologias, reservando aos humanos tarefas muito mais dignas e importantes. Em suma: novas demandas – velhas soluções – novos desafios. O SREI tarda e este descompasso marginaliza o sistema registral do processo de digitalização da sociedade brasileira.
Redundância informativa
Por fim, o Conselho Nacional de Justiça, por sua Corregedoria Nacional, vem de instituir um canal direto de comunicação entre os registros prediais e a administração pública municipal, a fim de informar as mudanças de titularidades de imóveis e municiá-los com dados recolhidos dos registros prediais. Diz a norma que os dados “serão anonimizados pelo CNB/CF e pelo ONR, quando de seu recebimento, antes de qualquer tratamento estatístico” (§ 7º do art. 184-A da CNN/CN/CNJ-EXTRA). Como disse alhures, ou bem o ato normativo trata do envio de dados para os municípios ou cuida da geração de dados estatísticos, lembrando-se que os dados eventualmente necessários para a atualização cadastral da administração municipal não devem ser anonimizados. A propósito registrei em recente artigo:
“O apoio do Registro Imobiliário na ‘atualização cadastral dos contribuintes das Fazendas Municipais’ (art. 4º da Resolução CNJ 547 de 22/2/24) é típica atividade de coordenação entre o cadastro e registro, ideia propugnada e defendida há décadas pelos registradores.7 O Provimento CNJ 174/24 foi feliz em estabelecer como se dará o ‘intercâmbio de dados estruturados entre as serventias extrajudiciais e as municipalidades’ (§ 6º do art. 184-A do CNN/CN/CNJ-Extra), fazendo presumir que a relação a ser construída é P2P (peer-to-peer), sem a concentração de dados em centrais eletrônicas extrarregistrais (proxies registrais), sabendo-se, de sobejo, que a concentração de dados em plataformas extrarregistrais é sempre problemática e os episódios de ataques hacker lamentavelmente tornaram-se bastante comuns. Data is the new oil – rezam os cânones da economia digital.
Além disso, a expressão intercâmbio pode (na verdade deve) ser interpretada no sentido de reciprocidade na entrega da informação, uma via de mão dupla. Muitos dados albergados na administração pública são igualmente relevantes para aperfeiçoar o registro, favorecendo a mais perfeita coordenação entre o registro e o cadastro.8
Seja como for, espera-se que os responsáveis pela redação do manual técnico para especificação dos dados e padrão da API levem em consideração a necessidade de se preservar a privacidade na troca de informações, somente possível pelo uso de criptografia assimétrica”.9
De fato, os municípios poderão acessar as bases de cada unidade com o uso da chave privada do agente responsável (certificado digital). Os dados serão criptografados na origem (serventias) com o uso da chave pública do agente. Com isso preserva-se, ponta a ponta, a privacidade dos dados pessoais.
Entretanto, não deixa de ser impressivo o fenômeno de redundância informativa no âmbito de vários cadastros, sejam eles municipais, estaduais ou federais, mantidos e suportados pela administração pública.10 Com a iminente criação do CIB, do qual os cartórios serão um ramal ancilar, deveríamos concretizar o que há décadas se propugna – a interconexão entre cadastro e os registros públicos.
Apocalípticos e integrados
Há mais de dez anos escrevíamos sobre os perigos representados pelo SINTER. A iniciativa da RFB nascia com uma clara ambição: instituir o registro de imóveis eletrônico previsto na Lei 11.977, de 7/7/09. O esboço do decreto trazia consignado em sua epígrafe o seguinte dístico: “Regulamenta o Sistema de Registro Eletrônico e institui o Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais – SINTER”.11 Os objetivos que inauguraram o SINTER acham-se bem assentados e consagrados no documento – Projeto Rede de Gestão Integrada de Informações Territoriais12, que fundamentava o esboço do decreto regulamentador.
As discussões acerca do SINTER, travadas no âmbito do IRIB e do CNJ – com a oposição de alguns setores da própria atividade13-, visavam reconduzir o tema ao leito natural da interconexão entre o registro de direitos e o cadastro imobiliário técnico multifinalitário. Afinal, havia o precedente exitoso da infraestrutura criada pela Lei 10.267/01, marco legal que promoveu a sincronia entre ambas as instituições – o cadastro e o registro de direitos – criando uma infovia virtuosa e de mão dupla.
Na mesma época divulgávamos um pequeno estudo acerca das transformações sofridas pelos paradigmáticos sistemas registrais francês e belga, descontinuados e assimilados pela administração fazendária de seus países.14 Era uma advertência lançada à reflexão dos registradores, acautelando-os para os possíveis cenários que ainda se desenham no horizonte. A tokenização de ativos e garantias imobiliárias e a blockchain, as reformas constitucionais que abrem espaço para regulação pelo Banco Central de registros de garantias (PEC 65), esses fenômenos devem ser percebidos como tendências e impulsos de transformação do ecossistema de registro de direitos.15
O esvaziamento de atribuições de notários e registradores não é novidade e bastaria o exemplo do RTD, que vem progressivamente perdendo atribuições para outros órgãos.
Aproveitando-nos do mote de Umberto Eco, o que a muitos pode soar uma advertência alarmista (“apocalíptica”) e a outros, simplesmente mais prudentes, as notícias do front podem servir de preciosos elementos para reflexão e estudos e, quiçá, provocar mudanças estratégicas e oportunas.
Conclusões
O ecossistema notarial e registral acha-se em processo de profundas transformações, algumas disruptivas, o que não significa que sejam necessariamente proveitosas; disrupção pode vir a ser simplesmente ruptura da tradição, destruição do edifício da fé pública. A RFB e a Corregedoria Nacional de Justiça poderiam ser provocadas pelo ONR ou mesmo pelo IRIB (ou por qualquer das várias entidades que pululam por aí) para implementar processos de intercâmbio de informações entre os órgãos públicos de maneira mais eficiente, menos onerosa e, se possível, cumprindo as normas e orientando-se a princípios consagrados na tradição do nosso Direito.
O novo SINTER poderá ser uma ferramenta útil para a dificuldade histórica de apuração do valor real das transações imobiliárias, mas não deve assimilar dados que não são necessários para a realização de seus propósitos originais de administração tributária, controle aduaneiro e gestão de informações econômico-fiscais.
Resta-nos aguardar para ver como o sistema se articulará com todas as instituições, agentes e atores envolvidos, e, especialmente, como serão construídas as infovias que permitirão o intercâmbio racional e inteligente entre todos eles.
Fonte: Migalhas
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