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O Banco Central pode evoluir sem se tornar juiz e carrasco
16 DE JULHO DE 2024
Mudança prevista na PEC 65 representa acúmulo de poderes incompatível com princípios que regem atuação do BC
Por Rogerio Portugal Bacellar
O Brasil tem obtido grandes conquistas em termos de acesso a crédito e cidadania financeira nos últimos anos. Boa parte disso se deve aos avanços institucionais do Banco Central, notadamente pela criação do Pix e, em breve, do Drex, na forma do PLP 80/2023, sob relatoria do senador Carlos Portinho (PL-RJ). Agora, porém, nos deparamos com uma ameaça de fragilização da independência e da neutralidade dos procedimentos desse fabuloso órgão público.
Trechos inseridos no texto em discussão da PEC 65/2023, que está para ser votada na Comissão de Constituição de Justiça do Senado, criam a possibilidade de o Banco Central executar atos que não lhe são próprios e regulamentar a cobrança por esses serviços, sem nenhuma fiscalização externa. Isso representa uma acumulação de poderes incompatível com os princípios que regem sua atuação. Tal mudança não apenas viola a separação das funções estatais, como também prejudica a população, que se verá sujeita a novas taxas e custos sem a proteção de uma supervisão independente.
A usurpação de competências do Estado pode tornar o BC uma figura que ao mesmo tempo regula e executa ações por ele reguladas, fiscaliza e opera no mercado do qual é o zelador. Essa posição de juiz e carrasco na mesma instituição coloca em risco conquistas democráticas recentes que são essenciais para a segurança jurídica, com base na separação de poderes e a proteção do direito de propriedade da população, cláusula pétreas constitucionais.
Vamos aos elementos práticos que levam a esse risco de captura do Estado e levantam dúvidas sobre como funcionaria esse modelo na prática:
- O texto prevê a possibilidade de novos sistemas de registros para a “operacionalização de novos produtos financeiros que vierem a ser criados ou regulados pelo Banco Central”, mas não explica se tais sistemas seriam públicos ou privados. Os cartórios atuam sob supervisão da Corregedoria Nacional de Justiça e tem o preço dos seus serviços fixados pelos representantes do povo através de lei formal. Quem iria supervisionar o Banco Central e como seria esse novo modelo?
- Se o próprio Banco Central assumir atribuições de notários e registradores, entidades reguladas independentes que cumprem atividades de Estado, isso poderá contaminar o papel de entidade reguladora e fiscalizadora com equidistância em relação aos agentes por ele supervisionados.
- A previsão de um modelo alternativo de registro por resolução do BC, além de ferir as regras de registro público e princípios constitucionais elementares, não explica qual será a transparência dessas informações. Os cartórios hoje são dotados de fé pública e têm transparência total sobre os seus dados, informações estas que são compartilhadas e disponíveis nacionalmente.
- O caminho conquistado de desjudicialização a partir de novos serviços oferecidos pelos cartórios se voltará para o sentido contrário, se tal “jabuti” for aprovado. Com a transferência de atribuições ao Banco Central, qual será a segurança jurídica dos registros mantidos por instituição que seria, ao mesmo tempo, zeladora das informações e parte interessada em um protesto?
- Quais os custos desses novos modelos para os cidadãos, que atualmente mantêm registros públicos sem qualquer ônus nos cartórios conforme a lei? Qual será a regra para expropriação de propriedade privada por um ente que não se submeterá a uma supervisão externa?
Uma proposta similar veio na tramitação da Lei 14.382, de 2022, que criou o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), sob a supervisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na ocasião, o Congresso Nacional optou por descartá-la.
Outra proposta similar de mesma origem desconhecida surgiu na tramitação da Lei 14.711, de 2023, que criou o Marco Legal das Garantias e, mais uma vez, foi descartada. Agora, pela terceira vez, interesses desconhecidos, mas persistentes tentam criar modelos de registros alternativos por meio de jabuti na PEC 65, sob o falso argumento de que vai prejudicar o Drex, que ainda tem sua regulação sendo debatida no Congresso e recentemente foi discutido em audiência pública no Senado. Torcemos para que os parlamentares resistam defendendo o que é melhor para o país.
É imprescindível delimitar a concessão de poderes à instituição, especialmente no que se refere à transferência para o BC ou empresas privadas de atribuições que já são reguladas pela Constituição Federal. O SERP vem evoluindo rapidamente, trazendo modernidade e simplicidade aos procedimentos relativos aos registros de atos e negócios jurídicos, garantindo eficiência e segurança jurídica sem custos adicionais aos cidadãos e, o que é mais importante, cada ato notarial ou registral sofre uma fiscalização permanente do próprio Poder Judiciário.
Sabemos que a posição do Banco Central vem sendo colocada em xeque por autoridades e, exatamente por estarmos neste momento de debate, entendemos ser preciso ter clareza sobre os limites da competência dessa instituição tão relevante ao país. Supervisionar, fiscalizar, normatizar e impor sanções ao sistema financeiro e monetário não são tarefas triviais. Ao contrário, prescindem de uma autonomia operacional e de uma independência incontestáveis.
Dessa forma, a Confederação de Notários e Registradores (CNR) e a Associação de Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) consideram primordial a delimitação dos poderes concedidos ao Banco Central na PEC 65, de forma a resguardar os direitos de cidadania e de propriedade privada da população brasileira, repita-se, sob a fiscalização permanente e direta do Judiciário em todo o país, o que em nada destoa da promissora implantação do Drex, a moeda digital a ser criada.
Estamos abertos a cooperar com o Banco Central e implementar alternativas que sejam práticas, simples, modernas e sem ônus adicional para os cidadãos, num esforço que já temos tido nos últimos anos. A evolução da estrutura atual, se bem feita, pode ser positiva para o ambiente de negócios brasileiro e o acesso à cidadania financeira.
Neste momento em que comemoramos 30 anos das conquistas do Plano Real e percebemos a importância de um atuação zelosa e firme da entidade monetária, vale lembrarmos como, no período imediatamente anterior ao plano, modelos ruíam e projetos definhavam a partir de medidas com interesses escusos e com motivos particulares que fragilizavam a atuação do Banco Central. Não podemos deixar esse cupim minar novamente a cidadania financeira que, a duro trabalho, estamos conquistando para os brasileiros.
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